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A geometria secreta dos pintores e o que isso tem a ver com fotografia – parte 1
Encontrei um tesouro em um livro não publicado no Brasil: A Geometria Secreta dos Pintores do pintor francês Charles Bouleau, publicado originalmente em 1963. Ao abrir a edição espanhola de 1996, não me decepcionei com as figuras em preto e branco. Li a primeira vez e sabia que não seria suficiente. Já foram três jornadas.
O livro percorre diversos momentos da pintura e apresenta estudos de composição, demonstrando, passo a passo, os fundamentos de sua tese: há uma geometria secreta que foi transmitida por estudos e livros de circulação limitada, que estruturaram, desde a Idade Média, a composição em pintura.
O autor, em momento algum, relaciona essa geometria secreta a algum tipo de fórmula ou atalho. Tampouco a relaciona a um truque usado para simplificar o desafio de compor imagens. Ao contrário, a geometria secreta e suas diversas soluções refletem o rigor estético necessário para satisfazer a intençaõ de cada artista. As fontes mais importantes para o seu estudo são De re aedifficatoria de Leon B. Alberti, La divina proportione de Luca Pacioli, Modo di formare um Pentagono de Alberto Durero, Trattato dell’arte dela pintura de Lomazzo e, por fim, Journal de Delacroix.
Algumas análises presentes no livro estão baseadas em desenhos e rascunhos deixados pelos próprios pintores estudados, mas a maioria são originais de Charles Bouleau. Ao longo do texto, vou acrescentar algumas observações ora extraídas do livro, ora relacionadas a outras fontes.
Este estudo será dividido em duas partes. Nesta primeira parte, estarão os exemplos mais recorrentes das tramas geométricas em diversas obras de pintura. Na segunda parte, reunirei fotografias que apresentam algumas das soluções de composição que se relacionam com a geometria secreta.
As "geometrias" mais comuns
As Figuras 1 a 7 apresentam as soluções mais comuns nos estudos de Charles Bouleau.
As formas circulares (fig. 1 e fig. 2) são comuns nas representações religiosas. O círculo não tem vértice nem aresta. Não ter início nem fim são propriedades de Deus. Deus é criador e não pode ter as mesmas propriedades de um ser criado. Além disso, o círculo só tem um ponto fundamental: o ponto central. A unicidade e o equilíbrio se adaptam perfeitamente à mensagem religiosa.
Figura 1
Figura 2
O pentágono também é uma forma relacionada ao imaterial e ao místico. Na antiguidade, traçar o pentágono com compasso requeria um conhecimento especial que exigia descobrir a razão áurea (ou proporção áurea) – a mesma proporção do Partenon e de outras construções clássicas. Assim, será possível encontrar o pentágono em várias imagens relacionadas à religião.
Inscrito no pentágono, também aparece o triângulo, símbolo de força, estabilidade e equilíbrio. As figuras religiosas e personagens poderosos são comumente inscritas em triângulos, preferencialmente, os isósceles.
Depois, destacam-se as figuras retangulares dominadas por suas diagonais, a armadura do retângulo (fig. 3 e fig. 4). As diagonais que se originam dos vértices do retângulo maior, ou em outros de retângulos internos suportam os assuntos e revelam os pontos que vão "sustentar" linhas outras diagonais, horizontais, verticais e pontos de fuga. Aparecem também as figuras retangulares com dois quadrados encaixados em cada uma das extremidades do retângulo (fig. 5). O losango limitado por essas diagonais e os diversos cruzamentos apoiam os assuntos ou dão origem a pontos que sustentam outras linhas importantes.
Figura 3
Figura 4
Figura 5
Mais adiante, surgem as soluções baseadas em “proporções musicais” (fig. 6 e fig. 7), que darão maior dinamismo à imagem. O Barroco exigirá ainda a inclusão de uma linha curva em “s” ou espiral, para aumentar a sensação de movimento e profundidade.
Figura 6
Figura 7
As pinturas e suas “geometrias”
As imagens 1, 2 e 3 apresentam a pintura de Domenico Ghirlandaio “Adoração dos Magos” (Galeria Uffizi, Florença). O marco (moldura) circular indica uma solução com formas regulares inscritas no marco. Sobressai o ponto central com o motivo principal da obra.
Imagem 1
Imagem 2
Imagem 3
As imagens 4, 5 e 6 trazem a pintura e a solução de Stephan Lochner “A Virgem do Jardim das Rosas” (Museu Wallraf-Richartz, Colônia). Dois pentágonos inscritos apoiam os diversos anjos na figura. Há um triangulo isósceles limitando a figura da Virgem, seu vestido azul e o menino Jesus. O equilíbrio do conjunto Virgem-Jesus é retomado com o peso visual proporcionado pelo anjo à esquerda e sua roupa amarela. A Imagem 6 apresenta os pesos visuais em equilíbrio, marcados em vermelho. Os demais anjos, distribuídos simetricamente em relação ao “eixo-sentido”, colaboram para o equilíbrio da imagem.
Imagem 4
Imagem 5
Imagem 6
Nas imagens 7, 8 e 9, vemos a obra “The Garvagh Madonna” (National Gallery, Londres) de Rafael e o esquema geométrico com dois quadrados apoiados nas extremidades do marco retangular. Percebe-se forte influência das diagonais traçadas e dos triângulos formados pelas diagonais. O equilíbrio da imagem advém da posição do rosto da Virgem, próximo ao vértice comum aos triângulos isósceles desenhados. Os rostos dos demais personagens se equilibram, opostos entre si em relação ao eixo-sentido.
Imagem 7
Imagem 8
Imagem 9
“A Escolha de Hércules” de Carracci (Museu de Capodimonte, Nápoles) (imagens 10, 11 e 12) tem o mesmo diagrama de dois quadrados inscritos no marco retangular. Neste caso, os lados dos quadrados suportam as duas mulheres, que estão equilibradas, embora suas posições em relação ao espectador (de frente e de costas) conferem dinamismo à imagem. As diversas diagonais suportam e conectam braços, pernas e outros componentes.
Imagem 10
Imagem 11
Imagem 12
A Última Ceia, de Leonardo da Vinci (imagens 13, 14 e 15), se apoia na armadura do retângulo. A perspectiva é determinada pelas diagonais da armadura. Os cruzamentos das diagonais definem vértices de importantes retângulos que dirigem o olhar do espectador para o Cristo. A imagem está equilibrada em relação ao eixo-sentido.
Imagem 13
Imagem 14
Imagem 15
O quadro de Botticelli “Primavera” (Galeria Uffizi, Florença) (imagens 16, 17 e 18) é instigante, pois a personagem principal não está no centro da imagem. Neste caso, há a opção por uma "geometria" mais dinâmica, com proporções que se relacionam com a música. As arestas do marco são marcadas nas proporções 4/6/9, dando um dinamismo harmônico à imagem.
Imagem 16
Imagem 17
Imagem 18
Vermeer, em “Mulher em frente ao virginal” (“National Gallery”, Londres) (imagens 19, 20 e 21), usa as mesmas proporções 4/6/9. O cruzamento das linhas diagonais que partem dos quatro vértices do marco são pontos importantes para traçar as horizontais e verticais mais destacadas.
Imagem 19
Imagem 20
Imagem 21
Rubens, no painel central do tríptico “A Elevação da Cruz” (Catedral da Antuérpia) (imagens 22, 23 e 24), explora dois conjuntos de diagonais traçadas a partir dos vértices opostos, no esquema 9/12/16. Além do esquema de diagonais, há a introdução de uma linha em “s”.
Imagem 22
Imagem 23
Imagem 24
Na obra “Vênus e o Organista” (Museu do Prado) de Ticiano (imagens 25, 26 e 27), vemos a introdução de um arco apoiado em um esquema 4/6/9.
Imagem 26
Imagem 25
Imagem 27
E por fim, Cézanne, em “As Banhistas” (Museu de Arte da Filadélfia) (imagens 28, 29 e 30), adota diversos arcos desenhados a partir de uma estrutura dominada pelos dois quadrados inscritos no retângulo.
Imagem 28
Imagem 29
Imagem 30
Seria muito ambicioso pensar que um fotógrafo tem o mesmo domínio sobre o motivo (ou assunto) que os pintores. Não, isso não ocorre. Mas você vai descobrir que alguns desenhos ou arranjos podem inspirar os fotógrafos. Pessoalmente, acredito que a composição em fotografia é originada na intenção, agilidade e intuição, alimentadas por uma persistente memória visual. Daí, encontro valor em estudar a composição de grandes pintores para "alimentar" esse tipo de memória.
Na parte 2 desse texto, veremos como essas geometrias podem ser usadas na fotografia e alguns insights de composição.
Atualizado em dezembro de 2022