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 Texto 7 

O fotógrafo Caravaggio

O Século XVII foi único para as artes. Boa parte dessa fama se deve ao Barroco, que tem suas origens em uma ferrenha luta ideológica. Coisa de gente grande.

Quando Martinho Lutero pregou as suas 95 teses na porta da igreja em Wittenberg em 1517 e lançou a revolta protestante, ele estava enfrentando, ao mesmo tempo, a Igreja Católica, a Itália e toda a identidade mediterrânea. Então, por quase 20 anos, o Concílio de Trento (1545 - 1563) reuniu a cúpula da Igreja para planejar o contra-ataque e a arte esteve envolvida nesta guerra desde o início. Os luteranos eram contra a arte e ondas terríveis de iconoclastia varreram o norte da Europa, destruindo pinturas e queimando estátuas. Mas a Igreja Católica sempre acreditou na arte. Seus principais representantes, naquela época, entendiam que as pessoas gostavam de ver o que adoravam. Isso deu à arte um tremendo poder. Roma foi o epicentro dessa explosão criativa.

O Concílio instruiu os artistas (e seus patronos) a sair e chamar a atenção das pessoas com todas os sentidos possíveis. O uso dramático das sombras e a transformação da pintura em teatro foi a estratégia do revolucionário Caravaggio para atender a esse chamado. Na tela, ele fez teatro. Ele criou uma nova e vívida arte religiosa que falava às pessoas com uma linguagem que elas podiam compreender sem esforço, ainda mais sabendo que boa parte delas era analfabeta. 

Rebelde, temperamental e notadamente irascível, Michelangelo Merisi (ou Amerighi) (1571 – 1610) atuou em Roma, Nápoles, Malta e Sicília entre 1593 e 1610. Na verdade, Caravaggio era o nome da aldeia natal da sua família e foi escolhido como seu nome artístico.

Antes de Caravaggio aparecer, a arte religiosa era distante e fria. Caravaggio seleciona modelos nas ruas, mercados e tavernas substituindo os deuses impossíveis da antiga arte sacra. A arte de Caravaggio era tão vívida, tão tangível, que algumas de suas pinturas foram rejeitadas pelos bispos e cardeais que as encomendaram. Seus modelos eram demasiadamente reais. Ainda assim, sua abordagem ímpar, o uso de contrastes intensos e o drama de suas cenas ultrapassaram os limites de Roma e infiltraram-se no Barroco internacional com uma velocidade surpreendente. 

É possível ver a leitura dramática e a sensualidade de Caravaggio na captura “decisiva” de Cartier-Bresson e nas sombras cativantes de Bill Brandt. Isso não é obra do acaso. Caravaggio foi redescoberto por causa da câmera. Foram a espontaneidade e a franqueza da imagem fotografada, tanto na fotografia em si como no cinema, que fizeram com que as pessoas voltassem a reconhecer sua grandeza. Do século XVII ao início do século XX, Caravaggio foi negligenciado e esquecido. Ele simplesmente não estava "no radar". Mas nas décadas de 1930, 40 e 50 – as décadas em que a fotografia ganhou destaque – ele foi descoberto como um verdadeiro mestre da arte ocidental.

Será que Caravaggio usou algum tipo de artifício para "encontrar" e compor suas imagens? David Hockney (um dos mais renomados pintores da atualidade) defende que Caravaggio foi o primeiro fotógrafo de fato. Tudo começa com a “câmera obscura”. Leonardo da Vinci já descrevera a técnica de usar lentes e espelhos para projetar uma imagem, e o cientista Giovanni Battista Della Porta registra que Caravaggio se inspirou nessa técnica para criar suas obras. Na verdade, o próprio Della Porta havia aprimorado, em 1582, a "câmera obscura" com a adição de duas lentes que permitiam projetar as imagens em foco e na vertical.   

Primeira representação esquemática da "câmera obscura", por Gemma Frisius – 1544, Bélgica 

Em Caravaggio, técnica de pintar talvez seja menos importante do que a forma como iluminou seus motivos. Certamente podemos concordar que a iluminação numa pintura como “O Chamado de São Mateus” é “real” – ele efetivamente criou essas condições de iluminação em seu ateliê.

“O Chamado de São Mateus”, 1600, Igreja de São Luís dos Franceses, Roma

Ao que tudo indica, Caravaggio transformou seu ateliê em uma gigantesca “câmera obscura”, ao criar um buraco no teto para obter luz suficiente para projetá-las sobre seus modelos e criar imagens na tela. Entre as evidências dessa teoria, uma vez que não há registros técnicos deixados sobre o processo, a mais forte é a inexistência de esboços nas telas examinadas. Hoje, a tecnologia permite constatar que há apenas linhas guias que delimitam a posição das figuras e as sombras.

Outro ponto curioso que parece apoiar essa hipótese é, na realidade, uma distorção ótica. Especialistas começaram a notar que algumas proporções corporais das figuras estavam “incorretas”. O motivo para essa “anomalia”, particularmente curiosa para um artista tão preocupado com o realismo e com os detalhes de suas obras, seria a propriedade das lentes que tinha à disposição. Estima-se que, ao mover a tela onde pintava ao longo do processo (pois a lente não conseguia projetar a cena inteira em foco), a alteração do foco alterava as dimensões da figura projetada. Isso pode ser observado se compararmos as duas mãos da pessoa que está à direita da tela “A Ceia de Emaús”.

 

Com os recurso da "câmera obscura", o pintor obtém um resultado em três dimensões na tela plana (observe o cesto de frutas na beira da mesa) e essa profundidade cria um efeito de “teatral” que acaba inserindo (ou convidando) o espectador a participar efetivamente do que é representado.

“A Ceia de Emaús”, 1601, Galeria Nacional de Londres

Além da tecnologia ótica, pesquisas afirmam que Caravaggio utilizou produtos químicos que fixaram partes das imagens na tela, como se fosse um filme fotográfico primitivo: “Já tínhamos certeza de que Caravaggio projetava imagens de seus modelos nas telas, mas agora encontramos sal de mercúrio sobre elas, que é sensível à luz”, disse Roberta Lapucci, que investigou o uso de produtos químicos após construir sua "câmera obscura" em parceria com David Hockney.

Os cineastas e os diretores de fotografia veem em Caravaggio uma potente fonte de inspiração. Dois exemplos de filmes (hoje clássicos) exploram a luz do pintor: “O Poderoso Chefão” (1972) de Francis Ford Coppola e “Caminhos Perigosos” (1973) de Martin Scorsese. As cenas são marcadas por uma fonte de luz "dura" e sombras intensas e dramáticas.

Cena do filme “O Poderoso Chefão” de 1972 

Cena do filme “Caminhos Perigosos" de 1973 

Como exemplo para a prática da fotografia, acabei conhecendo o trabalho do fotógrafo alemão Chris Night pela internet. Ele explora a luz barroca de Caravaggio com maestria e é autor de um livro dedicado a “retratos dramáticos” (The Dramatic Portrait: The Art of Crafting Light and Shadow). Algumas mostras de sua obra estão a seguir:

Para encerrar, como ficamos? Felizes! Bem felizes, pois um pintor dos séculos XVI-XVII nos incentiva a estudar e experimentar, ao mesmo tempo em que nos afasta da "neura" com equipamento fotográfico. Que alívio...

 

Em 2022, o cineasta italiano Michele Placido lançou “A Sombra de Caravaggio”. O filme já foi exibido no Brasil em 2023 durante um festival, mas ainda não está disponível no circuito geral nem nas plataformas de “streaming” mais populares (atualizado em fevereiro de 2024).

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