Texto 14
Técnica primorosa, beleza apurada
Este texto contém “spoilers”! Entretanto, no nosso pequeno caso, todos os “spoilers” estão perdoados. O título deste texto pode ser misturado, invertendo os adjetivos (“técnica apurada, beleza primorosa”) por uma razão simples: o espectador da série Ripley (Netflix, 2024) não é capaz de distinguir qualquer limite nem fronteira entre a ciência e a arte de iluminar, compor e contar uma história com a fotografia.
Baseada no romance “O Talentoso Ripley” de Patricia Highsmith, a minissérie de oito episódios é protagonizada por um vigarista de Nova York do início dos anos 1960 – Tom Ripley – , contratado por um homem rico para viajar à Itália e convencer seu pródigo filho Dickie a voltar para casa. Tom viaja para a Itália e daí inicia sua jornada, seu mergulho sinistro rumo a iniciativas mais graves e impactantes.
O diretor de fotografia Robert Elswit acredita que a fotografia de um filme, como os espaços e os personagens são iluminados, é uma forma de criar uma conexão direta com as emoções do público. No roteiro adaptado, o verdadeiro talento de Ripley parece ser simplesmente o de um vigarista “menor”, um sociopata capaz de manipular, explorar, esconder suas emoções e interpretar qualquer papel. Mas logo após chegar à Itália e ser exposto à vida e à cultura locais, ele sofre uma metamorfose que a série insinua ser a mesma que ocorreu com o pintor italiano Caravaggio no século XVII.
Caravaggio não aparece em nenhum lugar do romance de Highsmith e sua inclusão quase como um fantasma em Ripley é uma invenção do diretor e roteirista Steven Zaillian. A reação inicial do personagem Tom Ripley à obra do pintor é reforçada à medida que ele aprende mais sobre a vida do italiano. Daí, Ripley começa a se identificar com seu "fantasma" ao descobrir os muitos eventos paralelos de suas vidas. Enquanto Ripley viaja pela Itália para escapar da polícia, ele procura as pinturas de Caravaggio onde quer que estejam. Sua obsessão e identificação com o pintor se tornam um dos temas centrais na segunda metade da história. A série toma de empréstimo a biografia trágica de Caravaggio e consegue construir uma robusta obra barroca em preto e branco. Misturando o “chiaroscuro” com o estilo “noir” americano dos anos 1930 e 1940, cada tomada é uma aula de iluminação e composição.
A imagem nº 1 reforça o traço maligno do personagem Tom Ripley, que arrasta o corpo de uma vítima, ao usar a sombra projetada de baixo para cima, uma referência ao filme de terror clássico Nosferatu de 1922.

Imagem nº 1
A imagem nº 2 explora a geometria descendente das escadas do necrotério, convergindo para um ponto central. No fundo, a vítima e o legista, que executa o seu ofício. A geometria das escadas parece reforçar: o crime é resultado dos desejos diabólicos de Ripley.

Imagem nº 2
A imagem nº 3 apresenta uma via e as árvores iluminadas por fortes projetores artificiais pendurados do alto por guindastes. Observe como as copas das árvores estão iluminadas de cima e o efeito das luzes sobre o piso. Na série, os pisos de todas as tomadas externas eram propositadamente molhados para aumentar o contraste tonal. Robert Elswit trabalha como diretor de fotografia para cinema desde 1985 e ganhou um Oscar por Sangue Negro, de 2007.

Imagem nº 3
Na imagem nº 4, a sombra de Ripley projeta-se sobre Dickie e sua noiva Marge. Remete à ideia de uma ave de rapina que observa, do alto, a sua futura vítima.

Imagem nº 4
A imagem nº 5 mostra claramente o vilão na sombra e as religiosas na luz, um nítido contraste de tons que reflete o sentido de quem se posiciona na luz e quem transita, atua e se comporta nas sombras.

Imagem nº 5
No episódio 4, o personagem principal visita a igreja de São Luís dos Franceses em Roma onde três pinturas de Caravaggio sobre São Mateus estão penduradas juntas em uma pequena capela lateral. Há uma pequena janela sobre o altar dessa capela, mas as pinturas em si são muito escuras e difíceis de ver. Se o visitante colocar uma moeda em uma pequena caixa, três pequenas lâmpadas se acendem e iluminam as pinturas por alguns segundos. Para a série, a sequência foi filmada em uma catedral desconsagrada em Nápoles, mas a cena foi inspirada em uma das visitas do próprio diretor à igreja de Roma. Steven, mais conhecido como roteirista premiado (incluindo um Oscar por A Lista de Schindler), conta que, ao parar diante das pinturas e colocar um euro no dispositivo, as luzes se acenderam e ele ouviu de um padre parado logo atrás de si: "É a luz; é sempre a luz". A imagem nº 6 expõe o personagem absorvido pelas pinturas de Caravaggio.

Imagem nº 6
Na imagem nº 7, a aparição do personagem em uma visada direta e no reflexo do vidro à esquerda induz o espectador e entender que Dickie está diante de um falsário, um vigarista ardiloso.

Imagem nº 7
A imagem nº 8 nos traz os caminhos e as rotas de fuga de Ripley pelas cidades italianas. Quase atemporal, não? Podemos imaginar Caravaggio andando por estas vielas.

Imagem nº 8
Na imagem nº 9, o clima “noir” de um bar em Nova York, onde o solitário falsário é abordado por um misterioso mensageiro que caminha em sua direção.

Imagem nº 9
A imagem nº 10 explora as escadas curvilíneas e cansativas das cidades costeiras italianas que vão aborrecendo o personagem e intensificando seus tortuosos intentos.

Imagem nº 10
Fontes de imagens e de pesquisa:
https://www.panavision.com/highlights/highlights-detail/robert-elswit--asc--the-cinematography-of-ripley
https://nofilmschool.com/ripley-cinematography