Texto 11
O retratista do século XX – Yousuf Karsh
Seria bastante inusitado imaginar um fotógrafo que implicasse com o charuto pendente na boca do carrancudo Winston Churchill. Imagine ainda a ousadia de remover sem permissão o dito charuto. Mas quando Yousuf Karsh (1908 – 2002) teve apenas uma chance de capturar o retrato do primeiro-ministro britânico em 1941, ele fez, polidamente, exatamente isso. A figura que essa atitude produziu foi exatamente o retrato que Karsh procurava: uma imagem de resiliência obstinada no retrato nº 1. A fotografia que alavancou a carreira internacional de um dos grandes retratistas do século XX é apenas uma das mais de 370.000 que Karsh capturou em 15.312 ensaios antes de se aposentar em 1992.

Retrato nº 1, Winston Churchill, 1941
Karsh emigrou do Império Otomano (hoje Turquia) com destino ao Canadá aos 16 anos, deixando sua família para morar com um tio, que era fotógrafo. Pouco depois, seu tio arranjou um estágio com seu amigo John H. Garo, em Boston, um reconhecido retratista. Garo foi um tutor completo: encorajou Karsh a frequentar aulas noturnas de arte e a estudar a obra dos grandes mestres, especialmente Rembrandt, Velázquez e John Singer Sargent. Karsh nunca buscou aprender a desenhar ou pintar, mas se debruçou sobre a iluminação, o design e a composição desses grandes mestres. O Museu de Belas Artes de Boston foi sua universidade. Na Biblioteca Pública de Boston, que era seu segundo lar, tornou-se um leitor voraz em ciências humanas (literatura, artes, história e filosofia) e começou a expandir seus horizontes na fotografia. Mais tarde, ele declararia: “Estude ciências humanas (humanities, no original), porque isso o tornará mais sensível para registrar a vida”. Após esse aprendizado com Garo (1928 - 1931), ele montou seu próprio estúdio ao voltar para Otawa, Canadá.
Uma bela bagagem cultural deve tê-lo instigado a arrancar a cortina, cortá-la e improvisar o turbante do retrato da bailarina canadense Betty Low em início de carreira. A posição centralizada equipara a modelo a um ícone (religioso ou mitológico) e os ombros em ângulo e o véu conferem dinamismo ao retrato. O observador do retrato nº 2 não é confrontado pela modelo, mas fica magnetizado e imaginando: “para onde ela olha?”

Retrato nº 2, Betty Low, 1936
Karsh abordou todos os retratados da mesma maneira, desde Madre Teresa até pessoas desconhecidas. Ele viajava regularmente, preferindo fotografar as pessoas em seus próprios ambientes, a fim de maximizar sua naturalidade diante da câmera. E, na medida do possível, ele passou um tempo conhecendo-os antes mesmo de montar seu equipamento. Certa vez, ele pesquisou qual a bebida preferida de Ernest Hemingway no bar que este frequentava na véspera de retratá-lo. No retrato nº3, percebe-se que a câmera está mais baixa que os olhos, o que “empodera” o modelo. Os olhos estão posados para o alto, fazendo parecer que ele está imaginando o seu próximo romance ao mesmo tempo em que o coloca em uma posição confortável, dada a sua timidez.

Retrato nº 3, Ernest Hemingway, 1957
Karsh conversava com seus modelos ao longo das sessões. Para o modelo, essa introdução era apenas uma conversa casual; para Karsh, era como uma busca para algo que fosse genuíno e único. O que quer que ele determinasse ser essa verdade – a obstinação de Churchill ou a santidade do Papa – ele estaria preparado para fazer o “clic”: "Há um breve momento em que tudo o que há na mente, alma e espírito de uma pessoa é refletido através de seus olhos, suas mãos e sua atitude. Este é o momento para registrar." É justamente isso o que mostra o retrato nº 4. A Madre Teresa de Calcutá destaca-se pela expressão dos olhos misericordiosos, enfatizado pela leve angulação da cabeça para o lado. As mãos nos lembram da crença no trabalho incansável, ao tempo em que segura um terço, como uma síntese da crença no valor da fé e das obras. O olhar é direto e um pouco provocativo e nos faz pensar: como essa senhora consegue? O alto contraste de tons (veja o fundo) acentua o aspecto solene do momento.

Retrato nº 4, Madre Teresa, 1988
Karsh extraía a essência do retratado e do ambiente: "Dentro de cada homem e mulher há um segredo escondido e, como fotógrafo, é minha tarefa revelá-lo." Neste retrato nº 5, a câmera está mais baixa que os olhos, elevando a importância do modelo. Ele está de lado, conferindo volume e dinamismo. Este retrato de Einstein, de 1948, com seus olhos e suas mãos posadas, parece traduzir um misto de ação e compaixão, considerando a relação paradoxal do cientista com o avanço do conhecimento que desdobra no desenvolvimento, inicialmente defendido por ele, da bomba atômica.

Retrato nº 5, Albert Einstein, 1948
Foi contando uma piada que o contido e respeitoso Karsh conseguiu um breve, mas sincero, sorriso de Nelson Mandela, quando este visitava o Canadá como chefe de estado em 1990: "O coração e a mente são as verdadeiras lentes da câmera." No retrato nº 6, a pose é semelhante à de Madre Teresa, mas a leveza do resultado se deve ao menor contraste de tons e ao sorriso do modelo e às mãos mais relaxadas.

Retrato nº 6, Nelson Mandela, 1990
Durante a II Guerra Mundial, em 1943, por conta do sucesso do retrato de Churchill, Karsh fez um tour pelo Reino Unido. Lá ele fotografou diversas personalidades entre nobres, militares e artistas. Ele dizia: “Tento fotografar o espírito e o pensamento das pessoas. Quanto à tomada de alma pelo fotógrafo, não sinto que a tiro, mas sim que o retratado e eu compartilhamos dela mutuamente. Torna-se um ato de participação mútua." Neste retrato nº 7 de 1943, é George Bernard Shaw, dramaturgo e romancista irlandês, que aos 90 anos, ri levemente da própria piada que acabara de contar. A pose com o corpo em ângulo e repousado na poltrona, a direção diagonal da cabeça, os braços e mãos posados em nível diferente conferem dinamismo à cena.

Retrato nº 7, George Bernard Shaw, 1943
O caso da cantora de concertos Marian Anderson é único. Karsh não ficou satisfeito com nenhuma das fotos que havia feito do contralto que se tornara a primeira estrela norte-americana de ópera. Perto do fim do horário reservado para a sessão, o pianista entrou na sala para se preparar para um ensaio. “Esta parecia ser minha chance. Sussurrei para que tocasse bem baixinho o acompanhamento de The Crucifixion, uma das composições favoritas de Marian. Sem saber do meu pequeno truque, ela começou a cantarolar para si mesma. Apressadamente, eu fiz a foto. Este é o retrato (nº 8) de uma alma harmoniosa se revelando inconscientemente.” A altura da câmera aumenta a estatura do modelo e enfatiza o volume dos braços e mãos, como uma homenagem às origens étnicas da artista. O olhar e a posição da cabeça evocam uma inspiração divina para a sua arte.

Retrato nº 8, Marian Anderson, 1945
O retrato de sua segunda esposa, Estrellita Karsh, é bastante significativo. Karsh não esconde as características que a distanciam das mais admiradas atrizes que ele próprio havia fotografado (Elizabeth Taylor, Grace Kelly, Audrey Hepburn etc.), mas obriga o observador a admirar os efeitos da pele, os acessórios, o penteado. O resultado do retrato nº 9 parece indicar que ali existe uma Vênus de carne e osso, igualmente lírica e bela.

Retrato nº 9, Estrellita Karsh, 1963
Em agosto de 1962, Karsh foi até Atlanta, na Geórgia (EUA), para fotografar o reverendo Martin Luther King Jr, que tinha acabado de voltar para casa vindo de Albany, onde liderou a iniciativa mais efetiva contra à segregação vista até então durante meses. Karsh ficou impressionado com a capacidade de liderar do jovem religioso (Luther King tinha apenas 33 anos na época), que já era um personagem central da luta pelos direitos civis. Uma das maneiras de se elevar a estatura do motivo é colocá-lo em um nível superior ao da câmera. Karsh, no retrato nº 10, posiciona o modelo acima da câmera, gira levemente o corpo para a direita e o faz virar a cabeça vigorosamente para a esquerda (direita do observador) e para o alto, conferindo uma energia “positiva” (diagonal para a direita!), que mira o céu em uma clara referência à sua energia e às suas convicções de que a providência viria auxiliá-lo em sua causa.

Retrato nº 10, Martin Luther King Jr., 1962
Para terminar, um grande desafio: fotografar o polêmico e intenso Pablo Picasso. A villa do artista era o pesadelo para qualquer fotógrafo, com seus filhos ainda crianças andando de bicicleta por diversos salões lotados de telas. Karsh aceitou a sugestão do próprio Picasso para se encontrarem na galeria onde expunha suas cerâmicas. “Ele nunca vem”, disse o dono da galeria, quando o assistente e noventa quilos de equipamento chegaram para preparar a sessão. “Ele diz a mesma coisa para todos os fotógrafos.” Para surpresa de todos, Picasso não apenas manteve a palavra, mas chegou na hora vestindo uma camisa nova! O motivo aparece abaixo do nível da câmera, no limite inferior do quadro aproveitando a estrutura de alvenaria para emoldurá-lo (subframing). O fotógrafo intensifica a cena com o amplo espaço negativo acima do motivo que parece significar: “ninguém sabe o que se passa na mente deste homem!” Picasso não parece ser o machista, cético, zeloso, possessivo, tirano que diziam. Pelo contrário, o olhar e a composição do retrato nº 11 indicam que o fotógrafo estava no controle da situação.

Retrato nº 11, Pablo Picasso, 1954
Com sua habilidade singular de capturar a essência humana em imagens atemporais, Yousuf Karsh não apenas documentou figuras icônicas, mas também imortalizou as complexidades e as verdades de suas almas. Suas fotografias permanecem como um testemunho vivo do poder da arte em transcender o tempo, revelando a humanidade em sua forma mais genuína.
Fontes de imagens e de pesquisa:
https://karsh.org/ (todos os retratos)
https://time.com/3684569/yousuf-karsh/
Yousuf Karsh - The searching eye https://www.youtube.com/watch?v=mdKN7Wjw1YQ)
The Face of Yousuf Karsh's Time https://www.youtube.com/watch?v=8mPYBhcSDKM